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Um amor incômodo, de Elena Ferrante

27 junho 2018



Essa semana estou trazendo para o blog uma história direto do interior da Itália. A resenha de hoje é de Um amor incômodo, da italiana Elena Ferrante, um romance ao mesmo tempo curto – em suas modestas 176 páginas, um livro fininho – e extenso, por concentrar muita história no "pequeno recipiente" que pretende ser. Foi o primeiro romance de Ferrante que me propus a ler, depois da recomendação de uma amiga querida; essa é uma escritora que parece estar em alta atualmente, de modo que talvez vocês já tenham ouvido falar dela por aí.

Um amor incômodo, publicado no Brasil pela editora Intrínseca, conta a história de Delia, uma quarentona que vive em Roma. No dia do seu aniversário, Delia recebe a notícia de que sua mãe, Amalia, foi encontrada morta em uma praia. Detalhe: ela estava usando apenas um sutiã de renda caríssimo e luxuoso. Teria sido suicídio? Sabendo que a mãe costumava ser uma mulher modesta, totalmente sem luxos, usando sempre as mesmas roupas velhas, Delia acha tudo isso muito estranho e, ao voltar à sua cidade natal para enterrá-la, decide investigar um pouco sobre os últimos dias de Amalia e confrontar alguns fantasmas do seu passado.

Com o retorno à Nápoles, nossa protagonista vai confrontar os três homens que marcaram, de maneira negativa, a vida de sua mãe: seu tio Filippo, seu pai, e o amigo do pai, o misterioso Caserta. Todos esses homens, de diferentes maneiras, desgraçaram a vida de Amalia – e de Delia também, marcando-a com alguns traumas. Conforme vai relembrando a história desses relacionamentos, essa mulher inquieta começa a pensar que também teve sua parcela de culpa na vida difícil da própria mãe, sentindo-se culpada pelas agressões que ela sofria nas mãos daquele pai monstruoso. 


Ficha Técnica:
Título: Um amor incômodo | Autor: Elena Ferrante | Ano: 2017 | Páginas: 176 | Idioma: português | Editora: Intrínseca

Depois do choque inicial, começamos a perceber que a relação de Delia com Amalia é, no mínimo, estranha. É o próprio "amor incômodo" que o título do livro sugere – mas não o único "amor incômodo" que você encontrará aqui. Percebemos traços de psicanálise e Freud nessa obra: a própria Ferrante já chegou a comentar, quando questionada sobre seu livro, que o título original L'amore molesto – faz referência a um texto de Freud, "Sexualidade feminina", que trata da fase da vida das meninas em que mãe e filha vivem quase em simbiose, indissociáveis. Nesse momento, segundo o estudioso, o pai é visto pela menina como um "rival incômodo". Achei essas referências muito interessantes!  

Conforme a história avança, percebemos que nossa protagonista também sente rancor da mãe, porque ela a deixava meio de lado na infância, parecia sempre distante e focada em outras coisas, rodeada de uma certa "ambiguidade", um "mistério". Delia não sabe bem se isso é real ou se é uma ideia que foi implantada em sua cabeça pela atitude machista de seu pai, o qual sempre esbravejava que Amalia, no momento em que ele virava as costas, colocava sua melhor roupa e saía para traí-lo. Seria isso verdade? Quais são as verdades e quais são as mentiras nesse passado distorcido por relações tortas e pela memória?

Ao mesmo tempo que guarda rancor da mãe, Delia tentava imitá-la quando esta não estava por perto; queria ser como ela. Também tinha muito medo de ser abandonada – em certo ponto, parecia carregar o mesmo medo do pai, de que ela iria embora e acabaria por deixá-los. Tudo isso parece ter tido grande influência na formação da personalidade de Delia, que mesmo enquanto nos narra seus sentimentos, parece manter certa distância e às vezes até frieza, além do rancor e da culpa, que deixam o leitor muito desconfortável. Isso é claramente proposital, mas não vou mentir: o perfil insosso e os comportamentos dela, ora impulsivos, ora apáticos, me fizeram ter por várias vezes certa raiva de Delia. Seu cansaço e seu conformismo me irritaram. Sabemos muito pouco do que teria sido a vida "atual" dela, no tempo da narrativa, pois o foco está em seu passado. A única coisa que fica clara é que a identidade dela muito se confunde com a identidade de Amalia e ambas carregaram cicatrizes muito profundas do período em que viveram juntas.

Um amor incômodo é um misto de drama familiar com uma narrativa de mistério. Prevalece em boa parte do livro o suspense psicológico sobre o fim bizarro de Amalia, e enquanto vai atrás de compreendê-lo, para poder seguir em frente com sua vida, Delia vai desenrolando o novelo de memórias que poderiam colaborar para a elucidação desse mistério. A história cutuca a ferida dos relacionamentos abusivos e da violência com a mulher; pois ser mulher é incômodo. Ao mesmo tempo, lança um olhar profundo sobre as relações familiares – o quanto realmente conhecemos nossa própria família? Aqui não se tem família de propaganda de margarina: a realidade dói. Quantas Delias e quantas Amalias conhecemos por aí, frutos de uma geração em que as mulheres eram ainda mais oprimidas do que hoje?

Muito se especula sobre os livros de Elena Ferrante: ainda não li seus outros romances, mas dizem que ela trabalha muito com a questão da família e das relações complexas entre mulheres. "Elena Ferrante" é, na verdade, um pseudônimo – ninguém realmente sabe de quem se trata. Certo mistério envolve sua escrita: alguns acreditam que, pelo caráter tão intimista de seu texto, ela poderia estar contando a própria história em Um amor incômodo, que foi seu primeiro publicado na Itália. Eu acho isso bem possível, porque realmente tem uma "pegada" que soa mais autobiográfica. Não foi uma obra que chegou a me empolgar, pois acredito que poderia ter sido mais "viva" e menos confusa, mas fiquei satisfeita com a leitura e estou disposta a ler outras obras de Ferrante no futuro. 


As coisas mais difíceis de falar são as que nós mesmos não conseguimos entender.
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